quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Pinguela das sandices

Riacho morno de sandice,
corre calmo e pouco caldaloso,
qual rio de planície,
quase a andar cauteloso.

Perpassa as vilosidades da mente,
contorna a frivolidade da ciência,
molhando os pés cascudos de toda gente
dasagrilhoada da débil sapiência.

Arrolam nessas águas as máculas,
vão se as lágrimas fintandos os meandros do riacho.
Ao mar impessoal vão as mágoas
do matuto que louvando a sandice diz - Diacho!

Por que - Meu Deus - foste fazer irrefreável
o rio que me retorna a razão
E lento e mirrado e findável
são essas águas que me banham o coração?

Janela secreta

Que me fitem esses olhos miúdos
de espanto, admiração, impaciência ou sandice.
A janela que não me revela nada,
senão os vultos da paisagem,
é ainda mais secreta, indiscreta.
Belas são essas janelas
que não se permitem espiar.
Mas que me espie ela,
que me envolva nessa cortina suave,
que me roça a pele de leve;
que me diga sim e não
com a mesma boca
que beija e recusa
que fala e cala

que abre e fecha

como a janela
da mais doce alma,
que revelando-se
não se entrega
e
se entregando
não me revela.
Mas sei - sei sim
é doce e vale gastar a pena,
como quem abre a própria janela
para mostrar que não é cena:
Amo confesso,
me debruçar nesta janela
que nada, em absoluto,
me revela.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Quem são

Quem são estes que me habitam
estes que me esgotam,
estes que explico,
que me explicam,
que visito?
Grande hotel que sou,
de hóspedes infinitos
passageiros,
eternos,
transeuntes insones
do meu íntimo.
Quem são estes
que me caçam,
me ferem de vida,
me sangram
numa sangria atada?
Quem são estes
que os abutres devoram
eas cegonhas trazem
em uma multiplicação caótica?
Quem são estes,
que me cumprimentam no elevador,
que reclamam do meu barulho,
que se preocupam com meu silêncio?
Quem são estes que sou?
Não, contenha-se,
não me responda, por favor.

Favelas da alma

As favelas da alma expulsa teu
eu mais infame, mais sujo e indesejado;
este teu eu imundo que queres calado.
Expulsa o eu fétido que Prometeu

ateou o fogo impreciso da existência,
que na favela d'alma arde incontido
enquanto teu ser vaga nu perdido
pelo calçamento áspero da ausência.

Vê crescer do infértil teu eu humano,
vê reproduzir-se este ser que podas.
Em cada beco de teu ser - vê sê-lo.

Do que é grande n'alma sobra o que é insano
quando ao homem prudente dá-se cordas
para enforcar (-se) o que pode vencê-lo.