domingo, 31 de outubro de 2010

Escultura

Pá! Pá! Pá!
A picareta lasca-me as sobras,
esculpe-me as rachaduras
num mármore pobre.

Pá! Pá! Pá!
E a brisa escatológica
leva o pó ao caos
leva o pó ao ralo,
eleva o pó à prima-obra.

Pá! Pá! Pá!
Vejam como parece humano,
mas em ser humano quanto parece,
menos humano é ainda que o pó!

Pá! Pá! Pá!
A picareta golpeia com a dureza
de uma bailarina,
que brilha ainda enquanto baila no ar
antecedendo o golpe de candura.

Pá! Pá! Pá!
Pó! Pó! Pó!
Em tirar-me as sobras
sobrou-me o nada só!

Pó! Pó! Pó!
Eis assim que se faz um poeta:
nas palavras lançadas à brisa,
na escultura ferida de morte pela picareta.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Tão perto

em estar
tão perto
tão perto
estou
infinitamente
tão distante
quanto certo
que quanto perto
mais fico
distante
errante
em estar
junto

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Ri

Ri, plateia.
Ri de si,
da piada,
da zombaria
que faço de ti.
Ri de mim,
pois onde vai
para rir
o palhaço,
quando chora?
Ri agora, plateia.
Ora, pois, este riso
só dura uma hora.
Só dura o cair da máscara
que mostra a face
lágrima do palhaço.
Só dura
o cair da cortina.

Newton

Contrai cada músculo
mostra as veias do pescoço,
escancara teu vigor.
Cerra os olhos
com descomunal força.
Aperta os dedos,
solta um gemido manso.
Colossal força,
usa-a toda.
E ainda assim
não moverás,
sequer uma polega,
a quimera que
fora por ti
sonhada.

(con)Tradição

Tem medo do escuro
a criança
que mora em
cima do muro
entre o idi e o ego
do homem
de patente.
Mora entre
os músculos,
entre as vísceras,
os nervos de aço,
uma pequenina
criança
que morre de medo
da risada do
Palhaço.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Fantasmas da honra

Fantasmas da honra me assombram.
Caminham deslizantes por minhas palavras,
percorrem vísceras - a veia cava.
Teus urros de moral, em tom funesto, cantam.

Em singulares retratos amarelados,
nos papeis de poesia amassados,
se deitam esses fantasmas velhacos,
em meter castidade neste macaco.

Da ínfima parte não sabem a metade,
e reduzem o infinito a tal parte
do ser - prestes a ser decepado.

De tudo conhecido, sou a outra metade.
Meu grito calou, mas o eco nunca parte.
Fantasma da honra - foste tu o decepado.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Escola de Ballet

(Ao som de bach)
E um
e dois
e três
e quatro
e leve
e forte
e cinco
e cai
e seis
levanta
e sete
e sua
e oito
na rua
escura
que passa
poeta
derrama
poesia
e passa
e fica
denovo
escura
e anda
e nove
e dez
enfim.

domingo, 3 de outubro de 2010

Último poema

Inspira a fumaça do último trago.
Escuta o eco do último brado.
Prende no peito essa fumaça.
Fantasia.

No ar deixa dançar a fumaça.
Aquém boca, um corpo de poeta.
Além, sua última poesia.
Esvazia.

Gastando-se-ia na fumaça dispersa.
Se é corpo ou fumo não se sabe.
Repousa entre o aquém e o além.
Apostasia.

A fumaça se desfazer demora.
Esbafora para além a última poesia.
És agora a fumaça e não o corpo.
Alivia.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Narciso

Em observar narciso -
flor, homem ou depósito de vazios-
faz-se a medida:

É homem e vaidade - belo Narciso
que leva o ego ao ismo
e a face ao espelho d'água.

Afoga-se,
mas nada faz o narrador,
que só sabe o que vê do acontecido:
Vaidade, por certo, afogou o distraído.

O espelho refletiu o homem,
os olhos negros de narciso.

O homem refletiu o espelho,
a água e as lágrimas dos deuses esquecidos.

Refletiam-se em vice-versas,
versos e vísceras.

Narciso não apaixonou-se pelo belo,
Ele quedou-se apaixonado
pelo infinito.

Nota

Posto sol,
conforto amigo.
Nota sol,
tons medidos.

Repousa lá
longe e comigo.
Nota lá,
posto-eu sentido.

E se...
contigo,
Nota-si
agudo ruído.

Dá dó,
do doer antigo
Uma dó
a por fim no eu-infindo.