sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Da janela

Vejo tantas almas e pouca vida
Um ou otro coração que palpita
Passo tímido de volta e ida
Que em face ao tropeço - agita.

Vejo tantos olhos e poucos olhares
Em caótica tragetória trágica,
Embotados da ressaca dos mares,
Mas que em face ao encontro - faz-se mágica.

Vejo tanto barulho e poucas vozes
Roucas, parcas e embargadas;
Ignotas em murmúrios atrozes
Que em face ao silêncio fazem-se caladas.

Vejo tantos artistas e pouca arte,
Enrustida no simples cotidiano.
Hábia pincelada que vem e parte.
De face ao borrão, o artista faz-se humano.

Vejo tantos rostos e pouca face
Que se esconde em mesmo manto,
Fez-se igual para que não gastasse.
Em face ao medo, desfaz-se em pranto.

Vejo tanto sangue e velada guerra;
Metralhadoras e rosas em botão -
Envergonhadas de brotar da terra.
Em face ao balaço - vermelhidão.

Vejo tanto sonho e pouca ação.
Vejo na rua, imensidão.
Tantos iguais que nunca se dão.
Em face ao voo, prefiro o chão.

Augusto Ramos(para Gabi Ramos)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Estopim

De um acaso encontro amante,
Fez planger berro calante,
De fome e vida, pedante,
O quinto rebento errante.

Berrou sem euforia
De frio e apostasia
Ao relento, a revelia.
E tu? Não o via.

Era infértil, mas crescente
Do destino, paciente;
Garoto de infância, ausente.
Do por vir inconsciente.

O rebento que outrora plangia
Dos iguais se escondia;
Do cotidiano, era folia.
E tu? Tu não vias.

Do senso era esquecido;
Por consenso: foragido.
O pensamento mais perdido,
Assim sem rima, sem poesia.

De vingança se enchia;
Dos iguais, raiva sentia,
Mas sabia, não devia.
E tu? Ainda não vias.

De sonhos, privado;
Da voz, fez-se calado.
Pelos iguais acusados,
Sem julgamento: culpado.

Latente fome sentia,
De comida, eresia;
E a noite caindo ia...
E tu? Não, não vias.

Do calibre fez amante;
De tantas vidas, calante;
De justiça e alma, pedante:
O balaço, certeiro, errante.

Calou em euforia.
Partia a alma em apostasia;
Lá caído à revelia,
O teu corpo - este tu vias...

E teu medo era crescente,
Por ajuda impaciente;
Pérfido brilho ficava ausente;
Foi-se tu, inconsciente...

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Para não sofrer

Para não sofrer
Hei de me esquivar
Do soco no estômago;
Do tapa com luva de pelica.

Para não sofrer
Hei de cegar
Do garoto de fome, caído;
Do meu direito destituído.

Para não sofrer
Hei de me esquecer
Da infinda guerra que se trava;
Daquela alma que aqui estava.

Para não sofrer
Hei de me acostumar
A acordar sem bom dia;
A beijar sem euforia.

Para não sofrer
Hei de me embriagar
Com cavalares doses de uísque,
Cafeína, anfetamina - ansiolíticos.

Para não sofrer
Hei de mostrar
A todos outros bêbados
Meu ignoto reflexo - minha sanidade.

Para não sofrer
Hei de pagar
O preço da dose;
Vender a alma.

Para não sofrer
Não hei de deixar,
Que a poesia transborde,
Que o coração acelere.

Para não sofrer
Hei de ficar repetitivo,
Para não correr o risco
Do erro, do riso.

Para não sofrer
Hei de ignorar
Qual seja a vicissitude;
Toda e qualquer virtude.

Para não sofrer,
Hei de me diminuir,
Hei de me desmerecer.
Dormir e quiçá com sorte
-morrer.

A tragédia é aqui

Há tempos as tragédias batem em nossos umbrais. Como um corvo, aquela figura apocalíptica descrita por Poe, nos amedrontam e deixam suspensa no ar - além da poeira - uma certa impotência e, por vezes, algumas partículas de culpa. Recentemente choramos pelas vítimas do terremoto no Haiti, que veio a piorar a quase ''impiorável'' situação do mais pobre país das amériacas. Foi notável a mobilização, mas fez-nos esquecer a ''escancarada'' tragédia brasileira; não só a das chuvas, mas estas tragédias dos homens, este pequeno Haiti que cultivamos em nossos quintais, mas que preferimos não ver. Sorte daquele outro Haiti, amparado por este de cá.

A tragédia haitiana, assim como a brasileira, tem inícios parecidos, ainda quando embrião na formação do país.No Haiti, uma independência negra e esperançosa, logo suplantada pelas sanguinárias ditaturas de Papa e Baby Doc's. No Brasil, uma colonização desajeitada, uma independência arranjada e ao final, um país ''de meia dúzia'' de pessoas. ''Não, aqui não é o Haiti! Temos uma democracia!'' Corrupta, elitista e desigual!

O Haiti teme as gangues; por aqui, tememos as milícias, o tráfico. No Haiti, mora-se em barracas; por aqui mora-se em encostas de morros e certas horas, abaixo da terra. No Haiti, tem-se fome; por aqui, para muitos falta o que comer. No Haiti corações latejam embaixo dos escombros; no Brasil, os corações derretem à mercer da chuva e da lama. Ainda nos resta o carnaval, o futebol e quiçá uma foto ao pé do Cristo.

Os corvos, estas visitas tardias, batem, quase igualmente em nossos umbrais - deste e daquele Haiti. A ligeira diferença está em nossos cartões postais. Enquanto aqui temos para onde desviar as vistas das tragédias - com lampejos de Europa e alguns poucos levando a vida de ''um país de todos''- , no haiti não há tregua para as vistas, as tragédias nos saltam aos olhos.

E quem - óh Deus - devemos culpar? Jogaremos pedra na Geni? Como - óh Deus - enxergaremos esse Haiti invisível cá envolto em nós? Será preciso um Zeppelin? Talvez precisemos de um terremoto, para abalar nossas vistas, arder os olhos, chacoalhar a alma! Escancarar essa tragédia tão brasileira, tão haitiana.

Soneto à traição

Seduz-te com olhar fagueiro - a víbora
Sussurra amante teu nome - poeta
Chama-te para o banquete - Calígula
Ebria-te e crava em teu peito- a seta

Prova a terna quimera que embriaga-te;
O doce do beijo que em tua boca
Amarga-se; o arcanjo que ama-te
É o leal veneno deste cálice.

Beba até que em face a morte emudeça
A voz que de dor em teu peito grita
Ignota até que em solidão, pereça.

Carrega tu no sal de cada lágrima
O pérfido arcanjo que seduz
E o leal veneno que lento e triste
- mata.

Anjinha

Tu não vês anjinha,
Mas não porque não podes,
Que entre todas essas odes
Escapa uma pérfida lágrima:
É tua e é minha.


E em teu sal está tristeza
Metida em porção infinda.
Lastimando trai-te a cara
E triste ainda, desnuda-te a alma.
Faltando à fé jurada, escorre calma.


Mas não carregue em teu peito, lindo anjo,
Toda a dor deste eivado mundo.
Ouça este desarranjo profundo,
Sou eu que cá neste ignoto canto,
Canto sim, a roubar para mim, teu pranto.


Amar-me, minha anjinha, não carece
Deixa, deixa só essa alma que padece,
Mas ouça bem o último suspiro de meu canto...
Há muito chove a tristeza de teu pranto,
Dá-me tua lágrima, pois te amo
-sincero e tanto.

Não sei

Tentei por-te em versos
À sorte da palavra errante;
Traduzir-te de sonhos certos,
Reproduzir-te em voz amante,


Mas estes signos que ao vento distoam,
Que a boca esconde e dos olhos voam,
São ignotos em minha ignorância,
Perdidos em cada uma de suas nuâncias.


Ah! Como é pretenciosa essa rima
Estralando suave em boca minha
Quer ser doce como tu, menina
E se perde no contorno da boca tua.


São mesmo errantes as palavras que escrevi,
Em vão esforço não conseguem
Ainda que com sinceridade temtem
Ser tão belas como o que tenho por ti.


Não cabes em versos mesmo
Tento e tento... a esmo
Em rimas que malho e limo
Falo sim de teu riso


E teu doce jeito que me encanta
E a candura de tua alma
Que à minha acalanta.


E das vicissitudes que vivo
E do medo que agora sinto
E se ainda duvidas que te gosto...
Gosto sim, não minto.


Mas não me basto em palavras
De amor ou de amigo.
Se em versos não cabes,
Toma! Meu peito é teu abrigo.

Augusto Ramos (para marcela ;D)

A vida como ela parece

Abrem-se as cortinas. E tão logo nos é apresentada a luz, aprendemos que a vida é um grande espetáculo, ou pelo menos deve parecer. Quando nascemos e o choro não é escutado, ganhamos logo um tapa! Não basta estarmos vivos, mas temos de parecê-lo. A partir daí, a medida que as roupas não vão nos servido mais - seja pelo tamanho ou pela moda - vão se sucedendo, em ternas vicissitudes, uma infinitude de atuações, cenas, quadros em que quase podemos ver a rubrica; alguns chamam de viver e vão vivendo, atuando, se relacionando e contracenando; também vão brigando por um lugar ao foco do holofote e se matando - a morte é verdadeira.


Envoltos nessa atmosfera teatral, somos inspirados por Jacksons, Ches, Madonnas, figuras encobertas pelo manto da própria imagem, lembradas e estampadas pelo que representam e não pela pessoa que são. São estes nossos heróis, nossos arquétipos; aplaudidos por uma sociedade do espetáculo e aplaudindo esta.


Voltamos, senhores, à caverna, onde as sombras que nos alienam são também a verdade que nos sacia. Voltamos à tempos ancestrais, à barbárie, disputando a tapas o ingresso de um funeral. Fazemos da vida um grande show, em que o fundamental é estar sob os holofote, a imagem que queremos apresentar, seja ela de um cadáver, de um mini-vestido rosa ou de um sanguinário guerrilheiro estampado, tal qual um herói, na camiseta da criança.


Mas não achemos, caríssimos, que esse universo dos ícones ''imortais'' nos é distante. Voltamos também a nos forjar em grilhões nas cavernas. As relações humanas cada vez menos pautadas no ''ser'', a constante ânsia por auto-projeção - vide Geise Arruda, que agora frequenta até festas beneficentes das freiras beneditinas - e uma terna preocupação, não com o que somos, mas com a imagem que queremos vender, faz com que atos como os da família Jackson e a venda de camisetas com a ''marca'' Che, sejam meras metáforas desta sociedade que convivemos.


Já não nos basta vender a casa, ou vender o carro, ou vender a natureza. Queremos também vender a nós mesmos, nossa alma. Então temos de fazer o produto aparentar ser atraente. Queremos parecer mais ricos e compramos aquilo que nosso dinheiro não pode pagar; queremos parecer mais altos e logo metemos nos pés um desconfortável salto; queremos parecer mais felizes e lá se vão doses cavalares de calmantes, ansiolíticos, uísque. Nos embriagamos dessa vida real a fim de mostrar a tantos outros bêbados que somos, ou pelo menos parecemos, sãos - até que as cortinas se fechem.

(Des)canção do exílio

Do Grito que dei só resta o Eco,
Que à boca retorna deixando amargo gosto
Do sentimento; com o hálito seco
A lágrima que corta o rosto.


O riso na face figura, mas só faz privar do espelho
O que cravado na alma está em segredo.
Não há mesmo jeito sem no peito amor;
Nesta valsa errante - pra lá e pra cá - do pierrot


Faço jus ao exílio que vivo?
Neste ver passar da vida, passivo.
Neste exílilo sem ao menos a lembrança do sabiá.
Montando alheia Quimera embriagada - pra lá, pra cá.


E Deus? - Cavalga pomposo em seu alasão
Acena sorrindo em meu febril delírio.
Me abandonaste? - Ilusão.
Larga as rédeas para aplaudir meu martírio...

Confessional

Confesso que quando te vejo,
Desejo o que parece lascivo;
Mas ainda que queria teu beijo,
Minha'lma alegra com teu riso.

Confesso que quando te fito
É simpatia, não minto!
Mas se passas e não me olha
Tomo em paciência, espero a hora.

Confesso que aperto no peito sinto
E do amor indagado minto.
E a mão delatando teme,
Quando entrega-te esses versos, treme.

Confesso que o medo gela
E da boca a fala foge.
Confesso que esse bobo sorriso que vês
Também tem o seu nome.

Confesso que para mim não basta
Entregar-te esses versos, poesia.
Por isso também me entrego:
É teu, meu coração, maria.

Insônia

O despontar da'urora ao fim da vista
Faz lembrar que não dormi.
O pensamento na cabeça revirava,
O coração em meu peito se apertava;
Em quem pensava? - Em ti.

Pêlo e água e sal,
Em minha triste face se confundiam;
Na lembrança de seus possíveis beijos
Os sentimentos se perdiam;
Na dor de saber que você não vi,
Chorei, confesso - por ti ...

Diz-me, anjinha,
Pois lá fora já canta o passarinho;
Diz que vem e deixa-me dormir,
Meu peito clama, pede:
O que só existe - em ti.

E agora o que me resta,
Além da pouca luz que entra pela fresta
E estes tristes versos que lhe fiz?
De volta quero a alegria do riso que perdi
Que embora foi por não estar perto - de ti.

O sorriso

à uma menina cujos lábios quero beijo



Sofre poeta, a procurar na lira de mil outros
Uma palavra ou um verso, não qualquer
Que iguale em sutileza e beleza
O riso, os olhos e a alma daquela mulher.


Procura a esmo, poeta;
Sabes que não vais encontrar
Na lira de nenhum outro
O que só seus olhos vivem a procurar.


E mesmo que ache bela lira
E que tente fazer a rima
Ou que ache o prazer da vida;
Ah! A beleza daquele sorriso é infinda.


Contente-se, poeta!
Em cousa que pode lhes parecer banal.
Alegre-se em fazê-la sorrir...
E de sua alegria ermosa
Bela lira pode surgir.


E do belo sorriso,
mesmo que fabricado de tão pobre rima,
Faça belo o mundo,
Quiçá minha lira...

Só sei amar

Queria eu, nessas linhas, escrever o sentido da vida;
Pretensioso que sou queria explicar o amor.
Mas poeta que sou só mesmo sei
amar e viver.

Queria eu um caminho mais fácil achar
De um amor mais prazeroso desfrutar,
mas homem que sou só sei mesmo
amar errante e caminhar.

Queria eu com a ponta deste lápis revelar
Todo o segredo que uma alma pode guardar
E o tempo com um virar de dedos controlar.
Sonhador que sou o faria,
Mas só mesmo sei
Viver, caminhar e amar...

A vida é um eterno acostumar

Quem vos narra essa via nada sacra é a essência de um homem, que nada perdi exceto aquele a quem dava vida. Não perca seu tempo ardilando sobre como uma essência narra uma história, apenas preste a devida atenção aos fatos que vos compartilho. Esta não é uma história usual, talvez até lhe cause estranhamento: começo contando-lhe o final, afinal, este já era derradeiro. O mais importante é o começo, mas não se afobe, leitor, este tem seu lugar nessas linhas que se seguem.

Tudo havia terminado quando ao homem que dava vida foi lançado um olhar vindo do espelho de seu quarto. Ele fitou em retribuição cordial o igual homem que o fitava e exasperou-se em estranhamento ao sentir-se completamente alheio àquele. Levantaram as mãos juntos, o homem e a imagem, um a esquerda, o outro a direita; em movimento sincronizado, ambos tocaram a superfície espelhada e a despeito de tão parecidos, logo se acostumaram a não serem a mesma pessoa.

Antes disso o homem havia tido filhos, que para ele já haviam nascido crescidos. Acostumara-se a acordar à noite, a trocar fralda, a pegar bico caído ao chão; Tarde notou que seus quartos estavam vazios, quando se acostumou que chamassem-no de pai.

Antes que tivesse filhos, o homem se casara; antes que percebesse havia acostumado a escutar ''eu te amo'' e responder ''eu também''. Tão logo a isso se acostumara a amar também. Não demorou para que em alguns vãos momentos se esquecesse que casado estava e acostumara também a deixar sua aliança no criado mudo.

Antes que pudesse se casar e ter filhos o homem tinha de se tornar adulto e assim o fez como de costume. Acostumou-se a idéia de que suas idéias e seu ímpeto jovem não mudariam o mundo e acabou se acostumando com a idéia de crescer. Não tardou também para que tudo aquilo que acreditava desfalecesse em sua alma acabando por acostumar a fazer tudo aquilo que julgava errado no juventude.

E foi antes do espelho, dos filhos, do casamento e antes mesmo de ficar adulto que estivemos, eu e o homem, o mais próximos um do outro. Eis que chego onde prometi: o primeiro passo dessa via nada sacra que me levou ao definitivo afastamento do homem a quem dava vida, a vida! Ainda era criança e assistia televisão. Eramos puros e inocentes, por que não? Pareceu-lhe atrativa, talvez indolor a idéia que lhe fora apresentada: ''Acostume-se a acostumar, criança, terás a vida menos ralada''.

A sombra assombra

Qual vulto meu quarto assombra? - A sombra.
Que meus olhos profundos fita - grita.
Que a boca baixinho ora - chora.
Que fez do medo calafrio - frio.


Qual medo me atormenta agora? - Ora;
Ao rosto angelical implora - agora!
Que da sombra negra apareça - esqueça!
E ao profundo sono volta - revolta.


Estou em carne viva - viva
Indolor, porém, que me cutuque - machuque
A ferida alma desamparada - desesperada
Que cega vê a sombra - assombra.


Que a boca muda fala - nada
E a mão involuntária treme - teme
Qual alma meu peito gela - congela
E frio na minha sinto - não minto!


Qual palavra digo pra que vá embora - ora!
Qual segredo tem que me esconde? - Onde?
Que em meus ouvidos o vento sopra - mostra!
O sussurro que alivía o peito - deito.


E a sombra responder demora - chora!
Dize, ainda que já cedo - Medo
O segredo da sombra - assombra!
Qual que grita e não me escuta - luta!
E do meu peito faz o corte - morte

A padaria dos sonhos de fama

Diz-se que era um sonho quase sublime o que aquela padaria fazia. Um desses sonhos suculentos em que nos lambuzamos sem o pesar de ter de se limpar depois. Sabendo disso Carlos desceu as escadas, cumprimentou o porteiro e pôs-se na calçada em direção à padaria dos sonhos de fama.

Diz-se também que eram três jovens entediados e uma máquina, dessas que roncam enfurecidas rasgando a cidade. Cansados do conforto de suas vidas e das oportunidades oferecidas, resolveram embarcar naquele veículo, imbuídos com o único objetivo de sentirem-se vivos a despeito de não conhecerem a lei, a ordem, nem Carlos, nem a padaria dos sonhos de fama.

Carlos caminhava sereno apesar da juventude. A padaria dos sonhos de fama era a alguns quarteirões de onde estava e o tempo não parecia preocupá-lo. Seus passos firmes o levariam ao destino e logo teria em suas mãos o suculento sonho com que sonhava.

Os jovens não somente se contentavam com a velocidade com que cortavam o vento, mas para que se sentissem realmente vivos tinham que transpor as amarras que conhecemos como sociedade. Não lhes importava a polícia em perseguição nem a vida do cão que atropelado fora.

Carlos já estava na padaria. Comprara o sonho e agora poderia ir para casa. A pressa não lhe era característica, sabia que para tudo havia seu tempo e ainda não iria lambuzar-se com o sonho que acabara de comprar. Pôs-se de novo na calçada com o mesmo caminhar sereno.

Os jovens dobravam as esquinas, cortavam ruas, avenidas e vidas. E quando banalmente dobraram a avenida da padaria dos sonhos de fama deparam com o garoto que antes não conheciam. Era um garoto com um saco na mão. Talvez carregasse ali alguns pães, ou talvez um sonho.

Carlos olhara surpreso aquele carro azul metálico que havia dobrado a rua em alta velocidade. Ouvia as sirenes ao fundo e sabia que a polícia estava no caminho. Ouvia o amargo cantar dos pneus e o ronco enfurecido dos cavalos do motor se aproximando a galope. Ouvia sussurros de vozes ancestrais, e gritos descomunais. Estava atordoado e parecia não acreditar que tanta coisa se passava em sua cabeça naquela fração de segundo.

O jovem ao volante fitou o garoto que estava logo a sua frente. O choque parecia derradeiro e em meio aos gritos graves dos jovens percebia-se um lampejo de arrependimento, ou talvez aquele brilho, que é sinal de alma, nos olhos fosse vida.

Carlos tinha de escolher entre o sonho e a vida. Largou a sacola que carregava e correu atordoado para se por na calçada novamente.

O jovem ao volante tentou pisar no freio, mas tudo que conseguiu foi o cheiro de queimado e sonho que ficou no asfalto.

O passado

Sombras se forjam onde
outrora repousava meu caminho.
Intrépidas,destemidas, insolúveis
no passado que me embriaga.


Brotam de solo infértil
lembranças que já deviam estar esquecidas.
Lembranças que deixam o homem estéril,
A mulher nua, a criança adormecida.


Passado, esse balaço errante,
mesmo que estático.
Ora se confunde com o que há de ser,
Ora é enigmático.

O poema

Que outro sentido tem o poema
se não o de aliviar a alma.


Que outro sentido tem a alma
se não, aos corpos inóquos, dar luz.


Que outro sentido tem a luz
se não de iluminar o que é escuro.


Que sentido tem o escuro
se não o de provocar mistério.


Que outro sentido tem o mistério
se não de ser revelado.


Que sentido tem a revelação
se não de evidenciar a mentira.


E - por Deus - que sentido tem a mentira
se não de descrever o homem.


Mas que sentido tem o homem
se não fazer poesia.

O espelho

''Que a força do medo que tenho, não me impeça de ver o que anseio''
Vinícius de Moraes

Os fragmentos de devaneio que vos compartilho são agora tudo que me resta. A sequência de fatos que me impulsionaram a escrever aqui despertaram em mim os mais primitivos e, por que não, sublimes sentimentos que um homem pode sentir; a você leitor, talvez, nada mais cause que a incômoda sensação de que os acontecimentos poderiam ser reais e de fato os são. Não espero que dê crédito ao meu relato, somente peço que seja minha companhia, talvez a única que me resta.

Despertei de sonhos inquietos, arregalei os olhos, até que quase saísem da orbita, à procura de qualquer réstia de luz que desse alguma pista de onde estivesse. Recordo-me vagamente de como havia parado ali. Sabia apenas que era dia. A janela entreaberta deixava entrar um feixe, e apenas um feixe de luz, que repousava sobre um ponto qualquer do chão.

A escuridão dava conforto aos meus olhos recém despertos, mas não conseguia proporcionar conforto igual à alma. Exceto pelo feixe de luz, que me mostrava o azulejo branco-gelo, a sombra reinava soberana sobre o cômodo que outrora eu repousava; confortante e inquieta sombra, que escondia de mim onde estava. Meus pés tocaram o chão frio. Como um desbravador de matas virgens dava passos cuidadosos em direção ao feixe que vinha da janela. Meti um dos dedos por entre a fresta e forcei a abertura – esforço em vão... A janela estava emperrada.

A porta seria a saída natural para aquele pesadelo momentâneo que vivia. Talvez fosse um dia de má sorte, e nada mais – tentava confortar a racionalidade que insistia em me dizer que algo estava errado. Exausto por tentar abrir a janela, tateei a parede até que encontrasse o trinco do que imaginava ser da porta. Quando toquei a maçaneta, o som da voz de minha mãe invadiu meus tímpanos, bigorna e estribo até atingir minha alma inquieta, como uma injeção confortante, acomodando a alma no mais sublime sentimento de alívio: estava em casa.

Meu primeiro ímpeto foi de gritar, mas talvez minha mãe me julgasse louco – até mesmo as mães julgariam. Talvez contasse a ela o que havia passado em minha cabeça e depois talvez pudessemos rir de tamanha ingenuidade da minha mente juvenil. Meu ímpeto, assim como meu devaneio, foram contidos pela inquietude que se alojava sorrateira em meu peito quando forcei o trinco e a porta não se abriu. Fechei os olhos para que talvez pudesse acordar daquele pesadelo, gritei para que minha mãe pudesse abrir as grades que me prendiam e eu pudesse finalmente me libertar; gritava alto - sem me importar com julgamentos -, mas o tom da conversa ao telefone era indiferente aos meus gritos desesperados.

Contive-me, afinal, louco não era. Havia uma explicação lógica para o que estava acontecendo. Estaria sonhando, nada mais. Deitaria, e quando acordasse, a porta estaria aberta, a janela estaria desemperrada e minha estaria alma liberta. Confesso ter sentido medo quando repousei a consciência no travesseiro, logo suplantado pelo pesado sono que me foi inflingido.

Arregalei os olhos novamente, agora incomodados pela claridade que havia invadido meu quarto. A porta estava aberta e nada mais impedia que saísse da prisão que o pesadelo de outrora me prendera. Passos confiantes e apressados me levaram até o portal. Antes de sair me olhei no espelho apressado, para ter certeza de que não mais sonhava; a voz de minha mãe parecia mais nítida e alta, e que felicidade sentia ao ouvir sua voz, na medida que descia as escadas.

Passei o olhar pelos móveis, pela tevê desligada e pelo telefone fora do gancho, ao alcance das mãos de todos; nas mãos de ninguém. Naquele momento tinha poucas certezas; sabia, porém, que não dormia e nunca estivera tão consciente em toda minha vida. Escutava, sim, a voz de minha mãe falando ao telefone – presumo – com dona Gertrudes, mas não conseguia vê-la. Talvez meus sentidos estivessem a me enganar o tempo todo, como uma criança travessa que prega peças no próprio pai. O som que nitidamente vinha da sala, poderia estar vindo da cozinha. Entraria e veria minha mãe, iríamos rir juntos...

Apertei os olhos o máximo que pude, até que ardessem. Esfreguei-os até que a retina quase se deslocasse. Aplicava ali o castigo aos sentidos, como um pai castiga o filho travesso por lhe pregar tal peça que me fora pregada. Não podia acreditar, não queria acreditar que louco estava. As torradas ainda estavam quentes na mesa, o fogo estava aceso, a porta da geladeira aberta, mas nada além de minha presença habitava a hostil cozinha de minha própria casa.

Não pense, leitor, que me deixei ludibriar pela sensação de loucura. Meus irmãos travessos estavam se divertindo às minhas custas, nada mais. Tive essa certeza quando um novo som invadiu meus tímpanos, estribo e bigorna, até acertarem em cheio minha alma desconfortada, depositando sorrateiramente em meu peito a esperança renovada.


Era Chopin, ou talvez Mozart, que ditavam o ritmo que deslizava pelos degraus da escada até o quarto de meus irmãos. Aquelas notas atenuaram todo o temor que sentia da completa solidão e logo em seguida exacerbaram em mim o mais profundo medo que um homem pode sentir – nem mesmo a morte seria pior. A música, ou esperança, que ouvia, não vinha do quarto dos meus irmãos como meus sentidos me diziam, mas do meu quarto que outrora deixara vazio.

Não se espante, leitor, se neste momento escutares um coração palpitar ao seu lado. Pedi-lhe companhia e agora, certamente, escutará meu coração inflingindo estrondosos golpes à caixa toráxica em um som tão assustador quanto o afiar da espada do carrasco. Meti primeiro os pés pelo portal de meu quarto, queria adiar ao máximo o encontro com a verdade. Fechei os olhos antes que eles pudessem ver qualquer coisa que colocasse a prova minha sanidade mental.

Não há tarefa mais difícil que abrir os olhos quando não queremos ver. A música – de Mozart, ou Chopin – invadia meus ouvidos e aumentava ainda mais a tensão que me corroía por dentro. A força do medo que tinha disputava uma queda de braço com as pálpebras que relutavam em abrir. O som da última nota da música havia feito vibrar meus tímpanos, desconcentrei-me da batalha que lutava contra a curiosidade e esta me deu o golpe fatal. Abri os olhos. O silêncio entre a última nota e o começo de uma nova música foram suficientes para despertar em meu íntimo um sentimento de estagnação: a certeza.

Encontrava-me diante do espelho – não que seja importante onde estava, mas o que via. A primeira vez que olhara aquele reflexo, havia notado minha cama, minha janela, a mesa que agora escrevo, nada mais – lembre-se leitor de minha pressa em encontrar o conforto de meu medo. Lancei um olhar mais atento, franzindo as sobrancelhas, à imagem de meu quarto: estava lá minha mãe revirando os lençois, meus irmãos com lágrimas no rosto e uma incômoda lacuna, onde deveria estar. Havia me tornado a imagem de mim mesmo.

O muro

Para os acontecimentos que vou narrar a seguir, nada mais peço que atenção. Não me julgue bêbado ou repita, com o fervor de uma prece, as palavras que vos compartilho, são apenas o relato daquilo que quereria eu ser um sonho, mas, por infortúnio ou como queira chamar, foi tão concreto quanto os tijolos daquele muro.

A vodka era barata, mas era o preço que pagava para consolar a eterna decepção que sentia de mim mesmo. O tempo e os acontecimentos haviam me calejado; me tornei uma pessoa extremamente amargurada, desgostosa e, por que não, cruel. A única maneira de me afastar de mim mesmo, era afogando aquilo que alguns chamam de alma, o que não sei se posso chamar de minha, apesar de coabitar o mesmo corpo que o meu. Já havia tomado mais da metade da garrafa e admito ter passado da conta - quem nunca passou. Me dava por satisfeito ao sentir longe a alma, o peso que era obrigado a carregar.

Foi depois de um gole - ou teria sido depois de uma farta mordida no queijo rançoso - que vi, por mais que meus sentidos negassem com veemencia aquilo que era evidente, a surgência de um muro, tijolo por tijolo, rasgando ao meio meu quarto e sala e me separando da alma.

Confesso, enrubrecido, mas confesso, que o corpo inóco me dava uma sensação plena de liberdade, uma ausência de qualquer grilhão que aquela altura tentava me forjar. Não pense que enlouqueci; lhe avisei, leitor, não me julgue. Apenas narro os fatos e foi exatamente assim que aconteceu.

Enquanto recobrava a sobriedade, também sentia uma sensação nunca antes sentida. Sempre esperava armagurado o retorno de minha alma que era recobrada com a sobriedade e agora sentia um prazer raro - raríssimo - de poder não sentir a agonia do convívio comigo mesmo. Me olhei no espelho e não mais sentia a ameaça iminente.

O raro sentimento foi efêmero, como um gozo. Logo a inquietação tomou o lugar da segurança que sentia e agora a solidão pairava entre as paredes e o muro do meu quarto e sala. O convívio com o medo de mim mesmo já não me fazia companhia - e que outra companhia tem alguém tão amargurado. Levantei-me da posição fetal que estava a observar o muro, caminhei até a janela e vi lá fora os muros surgentes; separavam ruas, casas, vidas e almas...

Meu devaneio foi interrompido nesse momento. Um som estridente, ou uma voz vinha do outro lado do muro, que agora observava com os olhos apertados numa tentativa de dar credito aos meus sentidos que se recusavam a ver as evidencias. A passos surdos, caminhei até o muro, encostei a orelha nos tijolos frios a fim de ouvir aquilo, que alguns segundos depois, descobri ser o clamor da essência, que agora sabia ser minha, em reestabelecer o calvário.

Precisava da compania do medo de mim mesmo. Meus inócuos sentimentos sem alma tentavam me fazer sentir seguro, mas ainda sim era só - o que é um homem sozinho senão já morto. Meu instindo, ou talvez o desejo inconsciente de traspor o muro me fizeram olhar para o lado. Lá estava uma marreta, deixada ali, pelos homens que há pouco reformavam minha casa, ou pelo destino. A marreta também clamava para por o muro à baixo.

Era meu sublime dever reestabelecer o calvário, as vozes me diziam. Um dever amaríssimo, é verdade, mas que dever não o é. As vozes que vinham da minha cabeça, ou do outro lado do muro, me instigavam e a esse ponto ficavam cada vez mais altas, a ponto de escutá-las elas e nada mais. Agarrei a marreto com a veemencia de um padre que se agarra no crucifixo. Instrumento de destruição e renascimento - que ironia - agora inflingia aos tijolos severos golpes que faziam sangrar por entre o reboco.

Um a um os tijolos iam a baixo e sempre que um caía no chão me deixava mais proximo de mim mesmo; as vozes ficavam mais fortes. ''Não pule'', escutava surdamente em meio aos murmúrios indecifráveis de vozes ancestrais; devia ser a consciencia, nada mais. O útimo tijolo foi a baixo, agora havia espaço suficiente para passar para o lado de lá, da alma, de mim mesmo. Transpus o muro e finalmente me encontrei... a seis andares do chão; cinco, quatro, três...

Sobre cães e lebres

Cães e lebres; o homem e a liberdade. A mesma relação paradoxal que envolve os cães tentando alcançar, em vão, as lebres de plástico, é a mesma que envolve a eterna busca humana pela liberdade. Em cada vão momento, a sensação de quase alcançar a lebre, ou quase atingir o estado de liberdade, impulsiona cada vez mais a corrida, a luta pelo objetivo - ora tão próximo, ora tão inalcançável. Poder-se-ia dizer que lebres e liberdade são utópicos, não fossem as concretas batalhas em prol desses ideais; mas ser livre significa poder escolher entre correr ou não atrás das lebres?

Liberdade é um conceito relativizado - varia de indivíduo para indivíduo. Talvez ela se explique pelo direito de ir, vir e permanecer ou até pela possibilidade de expressar uma ideia, dependendo de quem a concebe(a liberdade) . Essa relativização ocorre porque constantemente confundimos ser livres com a sensação de liberdade. Enquanto expressar uma opinião ou até mesmo nadar nu em mar aberto nos dá uma sensação de sermos livres, a liberdade é um conceito arquetipado; por mais que nos sentimos desprendidos dos grilhões que nos forjam, há sempre um grilhão que impede a liberdade plena.

Entendo que ser livre é como ser feliz. Não exise felicidade plena, mas isso não é impedimento para se viver momentos felizes; o mesmo vale para a liberdade. A eterna possibilidade, aliada ao desejo, de alcançar a lebre, mantém o cão na corrida; a eterna busca pela libertação - por que não de si mesmo - mantém o homem vivo.

Não vejo, porém, a liberdade como utopia, apesar de inalcançável. É ingenuidade pensar que muros e barras de ferro são instrumentos de privação de liberdade. O homem em sua grandiosidade, enquanto pensamento, transcende as barreiras físicas. Sonhos, utopias e idéias são tão concretas quanto o concreto que impede a carne de ir, vir e permanecer.

Conclui-se que a liberdade talvez seja uma utopia concreta, por mais paradoxal que isso possa parecer. Uma topia que mantemos sempre à vista, como um arquétipo ( modelo a ser seguido), um guia. Não fossem as concretas lebres, não haveria motivo para correr; e a escolha entre correr ou não é uma metáfora entre viver e não viver, ser ou não ser.

Sobre cães, homens, lebres e liberade: não há um único cão que tenha abocanhado a lebre de madeira- ou de plástico, que seja - da mesma maneira que não há um único cão que tenha parado de correr. Para que ser livre, enquanto podemos escolher correr sempre atrás da liberdade...