Para os acontecimentos que vou narrar a seguir, nada mais peço que atenção. Não me julgue bêbado ou repita, com o fervor de uma prece, as palavras que vos compartilho, são apenas o relato daquilo que quereria eu ser um sonho, mas, por infortúnio ou como queira chamar, foi tão concreto quanto os tijolos daquele muro.
A vodka era barata, mas era o preço que pagava para consolar a eterna decepção que sentia de mim mesmo. O tempo e os acontecimentos haviam me calejado; me tornei uma pessoa extremamente amargurada, desgostosa e, por que não, cruel. A única maneira de me afastar de mim mesmo, era afogando aquilo que alguns chamam de alma, o que não sei se posso chamar de minha, apesar de coabitar o mesmo corpo que o meu. Já havia tomado mais da metade da garrafa e admito ter passado da conta - quem nunca passou. Me dava por satisfeito ao sentir longe a alma, o peso que era obrigado a carregar.
Foi depois de um gole - ou teria sido depois de uma farta mordida no queijo rançoso - que vi, por mais que meus sentidos negassem com veemencia aquilo que era evidente, a surgência de um muro, tijolo por tijolo, rasgando ao meio meu quarto e sala e me separando da alma.
Confesso, enrubrecido, mas confesso, que o corpo inóco me dava uma sensação plena de liberdade, uma ausência de qualquer grilhão que aquela altura tentava me forjar. Não pense que enlouqueci; lhe avisei, leitor, não me julgue. Apenas narro os fatos e foi exatamente assim que aconteceu.
Enquanto recobrava a sobriedade, também sentia uma sensação nunca antes sentida. Sempre esperava armagurado o retorno de minha alma que era recobrada com a sobriedade e agora sentia um prazer raro - raríssimo - de poder não sentir a agonia do convívio comigo mesmo. Me olhei no espelho e não mais sentia a ameaça iminente.
O raro sentimento foi efêmero, como um gozo. Logo a inquietação tomou o lugar da segurança que sentia e agora a solidão pairava entre as paredes e o muro do meu quarto e sala. O convívio com o medo de mim mesmo já não me fazia companhia - e que outra companhia tem alguém tão amargurado. Levantei-me da posição fetal que estava a observar o muro, caminhei até a janela e vi lá fora os muros surgentes; separavam ruas, casas, vidas e almas...
Meu devaneio foi interrompido nesse momento. Um som estridente, ou uma voz vinha do outro lado do muro, que agora observava com os olhos apertados numa tentativa de dar credito aos meus sentidos que se recusavam a ver as evidencias. A passos surdos, caminhei até o muro, encostei a orelha nos tijolos frios a fim de ouvir aquilo, que alguns segundos depois, descobri ser o clamor da essência, que agora sabia ser minha, em reestabelecer o calvário.
Precisava da compania do medo de mim mesmo. Meus inócuos sentimentos sem alma tentavam me fazer sentir seguro, mas ainda sim era só - o que é um homem sozinho senão já morto. Meu instindo, ou talvez o desejo inconsciente de traspor o muro me fizeram olhar para o lado. Lá estava uma marreta, deixada ali, pelos homens que há pouco reformavam minha casa, ou pelo destino. A marreta também clamava para por o muro à baixo.
Era meu sublime dever reestabelecer o calvário, as vozes me diziam. Um dever amaríssimo, é verdade, mas que dever não o é. As vozes que vinham da minha cabeça, ou do outro lado do muro, me instigavam e a esse ponto ficavam cada vez mais altas, a ponto de escutá-las elas e nada mais. Agarrei a marreto com a veemencia de um padre que se agarra no crucifixo. Instrumento de destruição e renascimento - que ironia - agora inflingia aos tijolos severos golpes que faziam sangrar por entre o reboco.
Um a um os tijolos iam a baixo e sempre que um caía no chão me deixava mais proximo de mim mesmo; as vozes ficavam mais fortes. ''Não pule'', escutava surdamente em meio aos murmúrios indecifráveis de vozes ancestrais; devia ser a consciencia, nada mais. O útimo tijolo foi a baixo, agora havia espaço suficiente para passar para o lado de lá, da alma, de mim mesmo. Transpus o muro e finalmente me encontrei... a seis andares do chão; cinco, quatro, três...
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