segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

O espelho

''Que a força do medo que tenho, não me impeça de ver o que anseio''
Vinícius de Moraes

Os fragmentos de devaneio que vos compartilho são agora tudo que me resta. A sequência de fatos que me impulsionaram a escrever aqui despertaram em mim os mais primitivos e, por que não, sublimes sentimentos que um homem pode sentir; a você leitor, talvez, nada mais cause que a incômoda sensação de que os acontecimentos poderiam ser reais e de fato os são. Não espero que dê crédito ao meu relato, somente peço que seja minha companhia, talvez a única que me resta.

Despertei de sonhos inquietos, arregalei os olhos, até que quase saísem da orbita, à procura de qualquer réstia de luz que desse alguma pista de onde estivesse. Recordo-me vagamente de como havia parado ali. Sabia apenas que era dia. A janela entreaberta deixava entrar um feixe, e apenas um feixe de luz, que repousava sobre um ponto qualquer do chão.

A escuridão dava conforto aos meus olhos recém despertos, mas não conseguia proporcionar conforto igual à alma. Exceto pelo feixe de luz, que me mostrava o azulejo branco-gelo, a sombra reinava soberana sobre o cômodo que outrora eu repousava; confortante e inquieta sombra, que escondia de mim onde estava. Meus pés tocaram o chão frio. Como um desbravador de matas virgens dava passos cuidadosos em direção ao feixe que vinha da janela. Meti um dos dedos por entre a fresta e forcei a abertura – esforço em vão... A janela estava emperrada.

A porta seria a saída natural para aquele pesadelo momentâneo que vivia. Talvez fosse um dia de má sorte, e nada mais – tentava confortar a racionalidade que insistia em me dizer que algo estava errado. Exausto por tentar abrir a janela, tateei a parede até que encontrasse o trinco do que imaginava ser da porta. Quando toquei a maçaneta, o som da voz de minha mãe invadiu meus tímpanos, bigorna e estribo até atingir minha alma inquieta, como uma injeção confortante, acomodando a alma no mais sublime sentimento de alívio: estava em casa.

Meu primeiro ímpeto foi de gritar, mas talvez minha mãe me julgasse louco – até mesmo as mães julgariam. Talvez contasse a ela o que havia passado em minha cabeça e depois talvez pudessemos rir de tamanha ingenuidade da minha mente juvenil. Meu ímpeto, assim como meu devaneio, foram contidos pela inquietude que se alojava sorrateira em meu peito quando forcei o trinco e a porta não se abriu. Fechei os olhos para que talvez pudesse acordar daquele pesadelo, gritei para que minha mãe pudesse abrir as grades que me prendiam e eu pudesse finalmente me libertar; gritava alto - sem me importar com julgamentos -, mas o tom da conversa ao telefone era indiferente aos meus gritos desesperados.

Contive-me, afinal, louco não era. Havia uma explicação lógica para o que estava acontecendo. Estaria sonhando, nada mais. Deitaria, e quando acordasse, a porta estaria aberta, a janela estaria desemperrada e minha estaria alma liberta. Confesso ter sentido medo quando repousei a consciência no travesseiro, logo suplantado pelo pesado sono que me foi inflingido.

Arregalei os olhos novamente, agora incomodados pela claridade que havia invadido meu quarto. A porta estava aberta e nada mais impedia que saísse da prisão que o pesadelo de outrora me prendera. Passos confiantes e apressados me levaram até o portal. Antes de sair me olhei no espelho apressado, para ter certeza de que não mais sonhava; a voz de minha mãe parecia mais nítida e alta, e que felicidade sentia ao ouvir sua voz, na medida que descia as escadas.

Passei o olhar pelos móveis, pela tevê desligada e pelo telefone fora do gancho, ao alcance das mãos de todos; nas mãos de ninguém. Naquele momento tinha poucas certezas; sabia, porém, que não dormia e nunca estivera tão consciente em toda minha vida. Escutava, sim, a voz de minha mãe falando ao telefone – presumo – com dona Gertrudes, mas não conseguia vê-la. Talvez meus sentidos estivessem a me enganar o tempo todo, como uma criança travessa que prega peças no próprio pai. O som que nitidamente vinha da sala, poderia estar vindo da cozinha. Entraria e veria minha mãe, iríamos rir juntos...

Apertei os olhos o máximo que pude, até que ardessem. Esfreguei-os até que a retina quase se deslocasse. Aplicava ali o castigo aos sentidos, como um pai castiga o filho travesso por lhe pregar tal peça que me fora pregada. Não podia acreditar, não queria acreditar que louco estava. As torradas ainda estavam quentes na mesa, o fogo estava aceso, a porta da geladeira aberta, mas nada além de minha presença habitava a hostil cozinha de minha própria casa.

Não pense, leitor, que me deixei ludibriar pela sensação de loucura. Meus irmãos travessos estavam se divertindo às minhas custas, nada mais. Tive essa certeza quando um novo som invadiu meus tímpanos, estribo e bigorna, até acertarem em cheio minha alma desconfortada, depositando sorrateiramente em meu peito a esperança renovada.


Era Chopin, ou talvez Mozart, que ditavam o ritmo que deslizava pelos degraus da escada até o quarto de meus irmãos. Aquelas notas atenuaram todo o temor que sentia da completa solidão e logo em seguida exacerbaram em mim o mais profundo medo que um homem pode sentir – nem mesmo a morte seria pior. A música, ou esperança, que ouvia, não vinha do quarto dos meus irmãos como meus sentidos me diziam, mas do meu quarto que outrora deixara vazio.

Não se espante, leitor, se neste momento escutares um coração palpitar ao seu lado. Pedi-lhe companhia e agora, certamente, escutará meu coração inflingindo estrondosos golpes à caixa toráxica em um som tão assustador quanto o afiar da espada do carrasco. Meti primeiro os pés pelo portal de meu quarto, queria adiar ao máximo o encontro com a verdade. Fechei os olhos antes que eles pudessem ver qualquer coisa que colocasse a prova minha sanidade mental.

Não há tarefa mais difícil que abrir os olhos quando não queremos ver. A música – de Mozart, ou Chopin – invadia meus ouvidos e aumentava ainda mais a tensão que me corroía por dentro. A força do medo que tinha disputava uma queda de braço com as pálpebras que relutavam em abrir. O som da última nota da música havia feito vibrar meus tímpanos, desconcentrei-me da batalha que lutava contra a curiosidade e esta me deu o golpe fatal. Abri os olhos. O silêncio entre a última nota e o começo de uma nova música foram suficientes para despertar em meu íntimo um sentimento de estagnação: a certeza.

Encontrava-me diante do espelho – não que seja importante onde estava, mas o que via. A primeira vez que olhara aquele reflexo, havia notado minha cama, minha janela, a mesa que agora escrevo, nada mais – lembre-se leitor de minha pressa em encontrar o conforto de meu medo. Lancei um olhar mais atento, franzindo as sobrancelhas, à imagem de meu quarto: estava lá minha mãe revirando os lençois, meus irmãos com lágrimas no rosto e uma incômoda lacuna, onde deveria estar. Havia me tornado a imagem de mim mesmo.

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